O PARADOXO CONCEITUAL DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA SOB O PRISMA DA LEI Nº 12.850/2013
Thank you for reading this post, don't forget to subscribe!Thank you for reading this post, don't forget to subscribe!Na última década o ordenamento jurídico brasileiro sofreu uma profunda modificação com a publicação da Lei nº 12.850/2013, que dentre outras alterações, redefiniu o conceito de organização criminosa.
Anterior a referida legislação, no que tange ao tratamento de crimes praticados por organização criminosa, vigorava a Lei nº 9.034/1995, que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, sem, no entanto, definir o conceito de organização criminosa, crítica recorrente à revogada lei.
Com a publicação da Lei nº 12.850/2013, se verificou a expansão dos chamados núcleos de inteligência e combate ao crime organizado, seja por parte dos órgãos de polícia, seja por parte do Ministério Público por intermédio dos GAECOS.
Em determinadas ocasiões, a justificativa para a eficiente funcionalidade desta nova e próspera dinâmica de combate ao crime organizado se resume a apresentação, por parte dos órgãos de investigação, de unilaterais relatórios, com complexos organogramas de modo a sugerir a existência de, não raro, adjetivadas e quase sempre sofisticadas pirâmides criminosas.
No entanto, nem sempre e necessariamente essa pirâmide formulada reflete, dogmaticamente, uma realidade jurídica plausível ao ponto de justificar a desproporcionalidade nas medidas muitas vezes adotadas a partir da legislação referida.
A vulgarização e midiatização do conceito de organização criminosa acabaram por submeter tão complexa definição dogmática a uma pragmática processual sumarizada e pouco crítica.
Como principais consequências, nas camadas sociais mais abastardas se verifica o hiperencarceramento e fortalecimento das organizações criminosas e nas camadas mais elitizadas, os crimes financeiros e o lawfare, tal como nos crimes do colarinho branco.
Com a aplicação da referida lei por parte dos órgãos de persecução, operações policiais com base na novel normativa passaram a se proliferar por todo o país, tanto nos âmbitos estaduais quanto federal.
Com isso, aflorou-se um verdadeiro paradoxo entre o conceito penal e dogmático do tipo organização criminosa e a prática forense.
Tal paradoxo se justifica até mesmo em razão do expansionismo do estado policialesco e a intensidade com a qual o processo penal do espetáculo é tratado pelos veículos de comunicação e a forma com a qual as notícias policiais são levadas à sociedade, de modo a insuflá-la com inevitável contaminação, seja de ordem política ou ideológica, na qual igualmente incluem-se atores jurídicos vulneráveis à essa influência de massa e acrítica.
Contudo, não se pode perder de vista que o conceito de organização criminosa é complexo e controverso, tal como a própria atividade do crime nesse cenário
A partir da Lei nº 12.850/2013, é que uma organização criminosa somente pode ser juridicamente validada com um número mínimo de quatro integrantes, não podendo se falar em organização criminosa acaso inexistente um escalonamento verticalizado no âmbito interno, entre chefia e chefiados, divisão de tarefas e atribuição específica para cada posto, cuja característica predominante é a informalidade.
A edição da Lei nº 12.850/2013 representou um verdadeiro enrijecimento por parte do aparelho estatal na esfera da punição penal em um contexto de política criminal manifestamente rigoroso, com forte tendência de superação até mesmo de garantias penais e processuais petrificadas tanto na Constituição quanto na legislação infraconstitucional.
A criminalidade organizada é um fator objetivo gerador de insegurança, mas o estado psicológico e social que disso se deriva é imediatamente retroalimentado pelos meios de comunicação e o poder político encarregado da repressão à criminalidade para legitimar assim mais facilmente as suas políticas.
A amplitude trazida pela Lei nº 12.850/2013 em seus instrumentos persecutórios e abertos, com amplas possibilidades para que os órgãos de repressão do aparelho estatal possam atuar com liberdade quase absoluta acabam por estrangular, substancialmente, direitos e garantias fundamentais, quase sem nenhuma oposição dos tribunais na contenção de abusos praticados a pretexto de combate ao crime.
Como pragmática punitivista, podemos conceituar a aplicação prática do tipo penal de organização criminosa por parte dos tribunais, na sua interpretação etiológica e sociológica a partir dos aspectos socais e de política criminal.
A operação Lava Jato e agora mais recente o inquérito das “milicias digitais” se traduzem em bons exemplos de rigorismo a aversão às liberdades individuais, constitucionalmente enumeradas, sob fortes aplausos, com o considerável apoio da mídia na crescente relevância da luta contra o crime organizado, ainda que o caminho conceitual seja obscuro acerca de como e onde o crime organizado se desenvolve.
Como premissa básica e elementar, com muito maior razão no Direito Penal deve ser interpretado de modo rígido, sem maiores possibilidades de ampliações e extensões em prejuízo de garantias individuais, como nos parece ocorrer com o tipo penal previsto no art. 1º da Lei nº 12.850/2013 quando envolve casos de colarinho branco.
Como consequência, se verifica a difusão de uma verdadeira máquina persecutória estatal, que ao ampliar a intepretação do tipo penal de uma forma acrítica, a pretexto de se punir, acaba por trazer inúmeros outros problemas que refletem diretamente no hiperencarceramento, com demandas cada vez mais sensíveis no âmbito das políticas prisionais.
Em resumo, um dos maiores paradoxos na definição de organização criminosa no que diz respeito à aplicação do tipo penal reside na dificuldade de se comprovar a existência do componente associativo, que sob um olhar punitivista acaba se traduzindo em um mero detalhe formal e superficial.
Basta comparar a quantidade de denúncias e condenações quando tratados os tipos de organização criminosa prevista no art. 1º da Lei nº 12.850/2013 e o de associação criminosa prevista no art. 288 do Código Penal, tipo este quase que desprezado pelos órgãos de persecução, dado o caráter mais abrangente no que tange aos mecanismos de investigação previstos naquela.
A fundamental diferença para a configuração do tipo penal, consistente na convergência de vontades para a prática delituosa, via de regra, sequer é discutida de forma detalhada pelo órgão jurisdicional, sendo irrelevante se aferir o verdadeiro animus associativo do agente, se mero concurso de pessoas, simples associação criminosa, ou se de fato está comprovada a affectio criminis societatis.
O referido movimento de instrumentalização da Lei nº 12.850/2013 para os fins punitivista não passa ao largo do chamado andar de cima, posto que os chamados crimes do colarinho branco estão sempre no radar dos aparelhos de persecução penal, que a depender do cenário pode ser ramificada em grupos econômicos, políticos e financeiros.
Neste cenário de persecução do chamado “andar de cima”, um dos instrumentos previstos na Lei nº 12.850/2013 mais utilizados para obtenção de prova é a colaboração premiada, a qual pouco vem contribuído, de forma justa, para a efetivação dos seus fins propostos na legislação, sem falar no risco que pode representar para o ordenamento jurídico quando mal utilizado, especialmente para o delatado.
Por vezes, mesmo desacompanhada de outras evidências, a palavra do delator é suficiente para confortar a teia indireta e por vezes enviesada pela hipótese acusatória, se tornando “prova suficiente” para a condenação do delatado.
No Brasil ainda se tem um Direito e Processo Penal primitivo, regulado pelo espetáculo e pela mentalidade autoritária e inquisitiva, indiferente para o papel da jurisdição a partir do paradigma constitucional do processo penal de índole verdadeiramente acusatória.
Nem sempre quando existente pluralidade de agentes nos crimes do colarinho branco haverá uma organização criminosa, sendo abissal a quantidade de denúncias e condenações quando tratados os tipos de organização criminosa prevista no art. 1º da Lei nº 12.850/2013 e o de associação criminosa prevista no art. 288 do Código Penal, quando este é quase que inteiramente desprezado pelos órgãos de persecução.
Daí porque a necessária discussão a respeito da definição legal que envolve o conceito de organização criminosa, assim como os desdobramentos pragmáticos na aplicação da referida normativa, o que torna imprescindível se socorrer às mais clássicas balizas dogmáticas do Direito Penal para se preservar a própria rigidez semântica do tipo penal, evitando-se flexibilizações e extensões inapropriadas em prejuízo de garantias fundamentais.